Questão de pele
>> 18/12/2010
Ela surgiu para esconder as vergonhas, mas hoje em dia revela o íntimo de cada um. A roupa é o sinal instantâneo da auto-imagem que queremos exibir. E, na visão da grande dama da moda, ela pode ser uma arma poderosa e infalível: “Vista-se mal, e notarão o vestido. Vista-se bem, e notarão a mulher.” Mademoiselle Chanel revolucionou, não apenas porque libertou a mulher dos trajes desconfortáveis e rígidos do fim do século 19. Mas porque valorizou o senso crítico: “O mais corajoso dos atos ainda é pensar com a própria cabeça”. Se os tempos modernos desafiam nossas escolhas em nome da Sustentabilidade, invocar a genialidade de Coco Chanel pode ser norteador. Foi o que eu fiz quando recebi um presente, que chegou cheio de recomendações: - Tenha muito cuidado, guarde-o em lugar fresco e escuro, e, se sujar, leve a um especialista. Esta pele pertenceu à sua avó. É um vison! Vesti e imediatamente senti o poder de transformação do visual. A peça macia e felpuda de cor castanha tinha a pelagem espessa, brilhante e vistosa. Embora com mais de meio século, mantinha um design atemporal. Envolta na altura dos ombros, proporcionava uma sensação de conforto e proteção. Era a mais perfeita tradução do luxo, o acessório que permitia a metáfora: os diamantes estão para as orelhas, assim como a pele está para o corpo. Chegou o dia de exibi-la. A noite do casamento estava mesmo fria em São Paulo, coisa rara nos últimos invernos. A festa era de gala, num endereço tradicional da cidade, o Jockey Clube. Escolhi um vestido de seda preto, me enrolei no vison e me perfumei, afinal, segundo nossa musa: ”Uma mulher sem perfume , não tem futuro!” Mas a última olhada no espelho, em vez de glamour, revelava inquietação: Eu sabia que o animal havia sido morto numa época em que não existia o risco de extinção da espécie. Tinha certeza de que ninguém iria me hostilizar na festa , pois grande parte das mulheres estaria ostentando a sua estola ou casaco de pele. Possuía o aval da papisa da moda, Anna Wintour, editora da vogue americana, fã incondicional de peles e uma das responsáveis pela “fur mania” atual, um boom que não se via desde os anos 80. Tinha, portanto, razões de sobra para usar o bicho, mas nenhuma tão contundente quanto a deixada pelo legado de Chanel : “A moda não é algo presente apenas nas roupas. A moda está no céu, nas ruas, a moda tem a ver com ideias, a forma como vivemos, o que está acontecendo.” Não poderia ignorar que, se usasse o vison, vestiria a capa da indiferença diante de um mercado cruel e fútil, que não pára de crescer. De acordo com a Peta (Pessoas pela Ética no Tratamento de Animais), a indústria da pele mata 50 milhões de animais por ano no mundo. Só na China, a produção atingiu números entre 20 e 25 milhões em 2010, ao passo que no ano 2000, oscilava entre 8 e 10 milhões de peles. A organização beneficente invade desfiles de moda e aterroriza as donas do acessório, jogando baldes de tinta para inutilizar a peça. É uma forma de protestar contra os maltratos dispensados aos bichos, que passam suas vidas confinados em minúsculas gaiolas. Para a extração da pele, são eletrocutados, asfixiados, envenenados, afogados ou estrangulados. Nem todos morrem imediatamente, alguns são esfolados ainda vivos! Em alguns locais, para que as peles fiquem intactas, corta-se a língua do animal, deixando-o sangrar até morrer. A voz da consciência soprou mais uma vez ao meu ouvido e ouvi o conselho da mestra das agulhas: “Elegância é recusar.” Abri mão da gostosa sensacão térmica da pele morta do vison e fui às bodas. No salão ricamente enfeitado, a fauna mórbida desfilava à minha frente. Era uma profusão de visons, chinchilas, raposas, zibelinas, cabras e cordeiros. Bichos montados, pendurados, entrelaçados em mulheres superproduzidas. …e bem agasalhadas. Toda concessão tem seu preço. O ar gelado entrava pelas janelas e resfriava até a minha alma, obrigando-me a contorcer os músculos. Mas toda renúncia, a sua recompensa. O desconforto em pouco tempo desapareceu, quando me senti envolvida pelo calor dos braços de um certo alguém. Como dizia Gabrielle Coco Chanel: “Uma mulher precisa de apenas duas coisas na vida: um vestido preto e um homem que a ame”
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